Quando aprendemos qualquer coisa, o nosso cérebro faz novas ligações. Se também envolvermos a criatividade, a emoção e os sentidos neste processo de aprendizagem, todo o processo é enriquecido. .
A neurociência encontra um terreno luxuoso na educação artística, que tem um impacto particular no fator emocional, na expressão e na criatividade. Falámos sobre tudo isto com David Bueno, que acaba de dar um seminário sobre neurociência na educação artística, oferecido pela Diputació de Barcelona. David Bueno é um especialista em neurociências, biólogo, divulgador e diretor da Cátedra Neuroeducação UB-EDU1st, a primeira no mundo dedicada exclusivamente a este tema.
Sabemos muito sobre o funcionamento do cérebro no que diz respeito à aprendizagem, mas será que existe um fator mais específico no que diz respeito à aprendizagem artística?
O cérebro aprende sempre mais ou menos da mesma forma, quer se trate de uma atividade artística ou não. Aprender não é mais do que estabelecer novas ligações no cérebro. E não importa se aprendemos a lista dos rios da Europa ou memorizamos uma partitura musical. Mas o que eu quero transmitir é a importância da aprendizagem artística para a construção global das crianças e dos adolescentes e, de facto, das pessoas de qualquer idade.
A criatividade que a arte permite é, então, fundamental para a construção global da pessoa?
Um aspeto caraterístico, embora não exclusivo das artes, são todos os aspetos criativos e sensoriais que as artes podem proporcionar. Diz-se muitas vezes: a música estimula a criatividade – se for bem feita, sim. Se o fizermos corretamente, sim. Se ensinarmos música e tudo o que pedirmos aos nossos alunos é que reproduzam uma partitura, sem crítica, sem contribuírem com nada de seu, isso não é criativo. Se permitir que os seus alunos reinterpretem essa peça, que acrescentem as suas emoções e sentimentos, que acrescentem coisas próprias, isso é criatividade. As artes estimulam a criatividade se as fizermos bem. Reproduzir uma obra de arte não é criativo, mesmo que o faça muito bem, como os grandes falsificadores que copiam um quadro na perfeição.
A educação artística tem um impacto particular no fator emocional, na expressão, na criatividade. É uma área de luxo para a neurociência?
Sim, sem dúvida. Os estudantes de artes a níveis mais elevados, como os que querem entrar para uma orquestra como músico, estão a aperfeiçoar a técnica ao extremo, e a criatividade não é tão importante nessa altura. Mas no ensino inicial e geral, como o pré-escolar, o primário e o secundário, é muito importante.
Na educação infantil, e até ao meio do ensino básico, as artes devem ser o foco central da aprendizagem, porque é o que dá mais plasticidade, o que permite que nos conheçamos a nós próprios, que integremos os sentidos. Não é que a matemática ou as línguas não devam ser ensinadas, mas devem ser baseadas nas artes. E depois, logicamente, é necessário reequilibrar, porque a aprendizagem torna-se mais complexa, mais difícil, mas se já tivermos uma base sólida de plasticidade, de conhecimento do nosso próprio corpo, de sensorialidade, não precisamos de continuar a trabalhá-la porque já a temos.
Porque é que, ao nível do cérebro, quando a componente emocional está envolvida, há mais riqueza em todo o processo de aprendizagem?
É aqui que entra o conceito de inteligência: a inteligência é saber muitas coisas ou saber aplicar o que já se sabe? Ser capaz de aplicar o que se sabe, de uma forma nova, em contextos diferentes, é criatividade. A criatividade aumenta a inteligência no sentido em que se veem mais possibilidades, se veem diferentes formas de aplicar o que já se sabe.
Mas será que a emoção está a ser mitificada face ao conhecimento?
Na educação, passámos de uma ponta do pêndulo para a outra, da aprendizagem através da memorização e da reprodução exata do que estava no manual escolar para a outra ponta, onde apenas a criatividade é valorizada. Podemos saber muito de história e não sermos capazes de a aplicar ao momento atual, ou o contrário, fazer uma tarefa muito criativa, mas não saber nada de história. A criatividade deve basear-se numa aprendizagem prévia. É preciso aprender coisas para depois poder aplicar a criatividade. Há que encontrar um meio-termo entre estes dois sistemas e, neste domínio, as artes têm muito a dizer. O sistema educativo tem de encontrar este equilíbrio.
Como é que os professores de música, dança ou arte podem aplicar estes princípios da neurociência?
É mais simples do que parece, mas não há receitas. No curso, deixei bem claro para eles que, na educação, dois mais dois não é igual a quatro. O que eu sublinho é a importância de combinar as artes. Da mesma forma que defendo a combinação das ciências e das humanidades, as artes também devem ser combinadas entre si. Ouvimos uma música, analisamo-la e depois desenhamos o que nos inspirou. Ou olhamos para uma fotografia e depois inventamos uma melodia que nos sugere essa imagem. E também utilizamos as artes para aplicar de forma criativa conhecimentos anteriores. Por exemplo, estamos a estudar a célula em biologia, e depois fazemos uma dança com os movimentos dos elementos da célula, em que um aluno é a mitocôndria, outro uma proteína, e assim por diante. Com esta interação aprende-se, porque nos atinge, enriquece-nos sensorialmente, faz-nos pensar e recriar.
Para pôr em prática estes exemplos, é necessária uma ótima coordenação entre os professores de ciências e de artes ou, pelo menos, uma forte motivação.
A coordenação é útil e necessária, mas muitas vezes o mais importante é a motivação. Se o professor de ciências tem esta ideia de dança, pode pedir conselhos ao professor de música sobre a forma de a fazer e, depois, ele próprio a faz na aula. Mas é muito importante que os professores sejam pessoas que tenham uma inquietação intelectual, uma certa vida cultural, caso contrário, como é que a vão transmitir aos seus alunos? Se o professor nunca lê, os alunos apercebem-se disso. Têm de ter uma base cultural, estar abertos a outras coisas para além da sua disciplina, porque o professor é um ser humano que é um ponto de referência para os seus alunos.
Se o professor de matemática não se limitar a explicar como se faz uma equação, mas der algum contexto histórico, ou a história das mulheres da NASA que faziam os cálculos para os foguetões com uma simples calculadora, está a enriquecer a aula. Se acrescentarmos a isto a explicação de que estas mulheres foram encurraladas porque eram mulheres e porque eram negras, estamos a introduzir uma reflexão sobre o racismo, estamos a colocar história, ética, valores, numa aula de matemática. Há uma inércia social muito grande, de que a única coisa importante é o conhecimento, mas como é que se consegue isso? É importante mudar a forma como olhamos para as coisas.
A forma como um cérebro se forma e amadurece influencia a forma como aprendemos e, vice-versa, a forma como aprendemos modula o cérebro. É uma via de dois sentidos
Nas pessoas, a biologia e a cultura inter-relacionam-se de uma forma fantástica. Os nossos programas genéticos adaptam o seu funcionamento à forma como a pessoa vive; se vivermos num ambiente de outros conflitos, os nossos genes adaptam o seu funcionamento para que possamos lidar com isso, e isso torna-nos mais agressivos, conflituosos ou individualistas. Por outro lado, se estivermos num contexto em que temos tempo para nos conhecermos, para apreciar um pôr do sol, para nos distrairmos a olhar para qualquer coisa bonita, isso está a enriquecer-nos, mesmo que pareça uma perda de tempo. É preciso aproveitar os momentos em que não se está a fazer nada de específico, porque então paramos os pensamentos voluntários e o cérebro aproveita o que fizemos antes e faz novas ligações.
Vários estudos demonstraram que os fatores da nossa personalidade relacionados com a criatividade, o autoconhecimento e a transcendência influenciam muitos outros genes relacionados com a perceção do bem-estar. E aqui a arte está muito presente
Este autoconhecimento, esta maior integração sensorial, favorece algumas pequenas mudanças e aumenta o seu bem-estar, o que não é o mesmo que felicidade. O bem-estar pode ser mantido constante, mesmo perante a tristeza e a frustração. A felicidade é efémera e quando desaparece sentimo-nos vazios. É por isso que é importante enriquecermo-nos sensorialmente: por exemplo, a música chega-nos não só através da audição, mas também através da visão, porque sugere imagens, ou provoca emoções, ou recorda-nos cheiros… vamos valorizá-la. Também o movimento, que nos dá uma perceção do nosso próprio corpo. A integração sensorial é importante para a nossa própria vida. Se não for assim, como é que acabamos por saber quem somos? A prática artística ajuda. Não é uma panaceia (remédio para todos os males), não há milagres, mas acompanha este ambiente mais reflexivo e interativo.
Como é que podemos ajudar os alunos a conseguir esta integração sensorial?
Atingir o ponto de equilíbrio da pressão, do estímulo, do esforço. Por vezes temos de fazer coisas que exigem esforço, mas que nos permitem aprender, mas sempre sem as saturar e vendo sempre a utilidade. Esforço acompanhado de momentos de descanso, de desligamento, de ligação…
Não de Tik Tok
Não. De facto, existe um estudo com adolescentes em que se verificou que meia hora a caminhar com os seus pares, a passear pelo bairro, gera uma maior sensação de conforto, por exemplo, com a secreção de serotonina, do que passar duas ou três horas a conversar nas redes sociais.
Entrevista originalmente publicada no Blog de l’educació local del Diari de l’Educació