Porque é que estas obras continuam a ter uma ressonância tão forte junto do público contemporâneo? E, mais importante ainda, até que ponto estas ficções literárias estão a ser realizadas no nosso mundo?
Nos últimos anos, romances distópicos como The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, 1984, de George Orwel,l e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, tornaram-se mais relevantes do que nunca. Estes livros, escritos em épocas diferentes, retratam cenários de opressão, controlo e manipulação da verdade que parecem mais próximos da realidade atual.
A política de controlo: Orwell e a vigilância global
O romance 1984,de George Orwell, publicado em 1949, descreve um futuro totalitário em que o Partido controla todos os aspetos da vida dos cidadãos através de uma vigilância omnipresente e de uma manipulação constante da realidade. Frases como “Guerra é paz, liberdade é escravatura, ignorância é força” tornaram-se símbolos de uma sociedade em que o poder reescreve a verdade para manter o controlo.
Outro romance de Orwell, Animal Farm, descreve de forma alegórica como as revoluções podem degenerar em novas formas de opressão. O livro, inicialmente concebido como uma crítica ao totalitarismo soviético, ressoa hoje na dinâmica política global, onde os movimentos populistas prometem mudanças radicais apenas para consolidar o seu poder, uma vez no governo.
Atualmente, vivemos numa era marcada por uma invasão da privacidade sem precedentes. Os governos e as empresas recolhem grandes quantidades de dados pessoais através das redes sociais, de dispositivos conectados e da tecnologia de reconhecimento facial. A vigilância em massa, muitas vezes justificada por razões de segurança, suscita preocupações quanto à liberdade efectiva dos cidadãos. Este cenário faz lembrar as estratégias do “Ministério da Verdade” de Orwell, em que a narrativa é reescrita para servir o poder. Um exemplo recente é o regresso de Donald Trump à cena política dos EUA com uma narrativa que questiona o resultado das eleições e alimenta um clima de desinformação. A sua utilização de plataformas como o Truth Social demonstra como a tecnologia pode tornar-se uma arma para criar bolhas de informação paralelas, onde a verdade é relativa e manipulada de acordo com os interesses do poder.

Desigualdades, crises ambientais, mulheres em perigo: The Handmaid‘s Tale e The Sower’s Parable
No seu romance The Handmaid’s Tale, Margaret Atwood imagina um futuro em que os Estados Unidos se transformam na teocracia totalitária de Gilead, um regime que institucionalizou a violência física e psicológica contra as mulheres, privadas dos seus direitos e reduzidas a meros instrumentos de reprodução. A história transcende as fronteiras do género e torna-se uma análise lúcida da dinâmica do poder e da opressão.
O escritor situa a génese do romance em Berlim Oriental, em 1984, demonstrando como as distopias mais eficazes não nascem da pura fantasia, mas da observação da realidade histórica, que infelizmente parece não ter ensinado nada à realidade contemporânea.
Do fundamentalismo às políticas restritivas que limitaram os direitos reprodutivos das mulheres em países como os Estados Unidos, a Polónia e o Afeganistão, tudo parece estar cada vez mais próximo do conto da serva da Difred. A anulação da sentença de Roe v. Wade em 2022 reduziu drasticamente o direito ao aborto em muitas partes dos Estados Unidos, enquanto no Afeganistão, as mulheres foram progressivamente excluídas da vida pública sob o regime talibã. As semelhanças entre a realidade e o mundo distópico de Atwood são alarmantes, evidenciando como a liberdade das mulheres continua a ser frágil e ameaçada.
Uma obra igualmente relevante é A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler, que explora o declínio da sociedade americana num contexto de crescente desigualdade, crises ambientais e fanatismo religioso. Butler imagina um mundo em que a sobrevivência se torna uma luta individual e a estrutura social se desmorona, uma ideia que se reflecte hoje na crescente desigualdade económica, na crise climática e na radicalização política.
Censura e manipulação da informação: “Fahrenheit 451” e a guerra contra a cultura
Ray Bradbury, no seu Fahrenheit 451, de 1953, descreve uma sociedade em que os livros são proibidos e queimados pelos “bombeiros” para evitar que as pessoas pensem de forma crítica. A censura é um instrumento fundamental para manter o controlo sobre a população, que é distraída por uma incessante barragem de entretenimento superficial.
Ainda hoje, a censura e o controlo da informação são uma realidade crescente. Em vários países, os governos restringem o acesso à Internet e aos conteúdos considerados subversivos. A Rússia e a China, por exemplo, exercem forte censura sobre os media e as redes sociais, impedindo a divulgação de opiniões contrárias ao regime. Nos Estados Unidos e na Europa, o debate sobre a liberdade de expressão foi inflamado por episódios de “deplatforming” de figuras controversas por parte de grandes empresas tecnológicas. O risco é que a censura, mesmo que motivada por razões de segurança ou de correção política, possa tornar-se uma arma perigosa contra a diversidade de pensamento.
Um caso emblemático é o de Elon Musk, que depois de comprar o Twitter (atualmente X), promoveu uma política de “absoluta liberdade de expressão”, permitindo que figuras anteriormente proibidas regressassem à plataforma. Este facto suscitou debates sobre a linha ténue entre a liberdade de expressão e a disseminação de desinformação. O próprio Musk acusou governos e empresas de exercerem um controlo ideológico sobre as redes sociais, enquanto outros o acusam de fomentar a polarização e o ódio online, criando uma realidade cada vez mais semelhante à descrita por Bradbury.
Será que o futuro distópico já chegou?
As semelhanças entre estes romances distópicos e o mundo atual são estranhas. As dinâmicas narradas já não são apenas ficção. O controlo, a repressão dos direitos, a manipulação da informação, a propaganda estão a moldar o presente.
A lição que podemos retirar destes romances é clara: a liberdade e os direitos não estão garantidos para sempre, mas devem ser ativamente defendidos. A ficção distópica não é apenas entretenimento, mas um aviso sobre as derivas autoritárias que podem tomar forma em qualquer sociedade. Reconhecer os sinais do passado e do presente pode ajudar-nos a construir um futuro em que estes contos continuem a ser apenas obras de ficção, e não a crónica do nosso tempo.
Atividades complementares
Ver a série The Handmaid’s Tale