No mundo da cultura pop, a banda desenhada e os romances gráficos surgem como poderosos instrumentos educativos, capazes de contar histórias complexas e transmitir valores profundos. Desde as origens da banda desenhada italiana até às obras contemporâneas, estas formas narrativas não só entretêm, como também educam e preservam a memória histórica, estimulando o diálogo sobre questões sociais e culturais fundamentais.
Todos os anos, no final de outubro, uma cidade italiana é transformada num palco gigante rodeado por antigas muralhas do século XVI. As cores do outono e as antigas muralhas tornam-se o cenário perfeito para uma filmagem que imortaliza Geralt de Rívia. Não é raro encontrar o Joker de braço dado com o Rato Mickey.
Estamos a falar do Lucca Comics & Games, o maior festival italiano dedicado à banda desenhada, à animação, aos videojogos e à cultura pop. Fundado em 1966 em Lucca como Salone Internazionale del Fumetto (Feira Internacional de Banda Desenhada de Lucca), o festival cresceu ao longo do tempo e tornou-se num dos eventos mais importantes a nível mundial.
Ao longo dos anos, o evento alargou os seus horizontes, passando de convenções de banda desenhada para convenções de jogos, integrando videojogos, animação, cosplay e ficção de fantasia e ficção científica. Isto fez do Lucca um ponto de encontro para fãs de todas as idades, com eventos que vão desde conferências e antevisões exclusivas a exposições e workshops com artistas e autores mundialmente famosos. Hoje, o Lucca Comics & Games é um festival que recebe centenas de milhares de visitantes, dando prestígio e visibilidade a um setor muitas vezes subestimado, mas com um potencial educativo incalculável.
As origens da banda desenhada italiana
As primeiras bandas desenhadas italianas datam do início do século XX, inspiradas nas bandas desenhadas americanas, e apareceram principalmente em revistas destinadas aos jovens, como o Corriere dei Piccoli (1908), um verdadeiro precursor, que trouxe para Itália a banda desenhada episódica e mostrou uma técnica narrativa inovadora para a época, como a separação das imagens das legendas (a típica “nuvoletta” era considerada inadequada para o público italiano). Nas décadas de 1930 e 1940, desenvolveu-se uma produção de histórias originais, muitas delas inspiradas nos westerns americanos e no género de aventura.
A Idade de Ouro: Tex, Diabolik e os clássicos italianos
As décadas de 1950 e 1960 marcaram uma época de ouro para a banda desenhada italiana, com o aparecimento de grandes nomes como Tex Willer, que se tornou o símbolo da banda desenhada ocidental em Itália; Diabolik (1962), criado pelas irmãs Angela e Luciana Giussani, representou uma revolução na banda desenhada italiana: um anti-herói sombrio, carismático e implacável que desafiava as autoridades e captava a imaginação popular. Esta banda desenhada inaugurou o género fumetti neri (noir italiano), que teve grande sucesso na década de 1960.
Entretanto, outros autores, como Hugo Pratt com Corto Maltese (1967), levaram a banda desenhada a um nível mais artístico e intelectual, explorando lugares exóticos e temas filosóficos, e abrindo caminho para um novo tipo de narrativa gráfica.
Anos 70 e 80: O boom da banda desenhada de autor e de sátira
Nos anos 70 e 80, a banda desenhada italiana enriqueceu-se com autores inovadores e temas mais ousados:
Andrea Pazienza tornou-se um dos rostos mais conhecidos da banda desenhada underground italiana, com histórias como Zanardi e Pentothal, que refletem o mal-estar e as contradições da juventude da época. Revistas como a Linus e a Frigidaire ajudaram a dar visibilidade a uma geração de autores inovadores, acolhendo banda desenhada que abordava questões políticas, sociais e culturais, muitas vezes num estilo satírico ou experimental.
Banda Desenhada e Novelas Gráficas: uma nova forma de contar o mundo e a história
A banda desenhada e as novelas gráficas são formatos visuais que têm o poder de tornar temas complexos acessíveis e cativantes, especialmente para os jovens. Esta capacidade baseia-se na combinação de imagens e texto, que não só facilita a compreensão, como também torna a leitura mais envolvente, conseguindo educar e sensibilizar de forma mais eficaz e com um impacto único.
Por exemplo, numa novela gráfica que trate de temas como a guerra, a pobreza ou a discriminação, as expressões das personagens, as cores e as escolhas estilísticas podem evocar imediatamente uma atmosfera ou uma emoção. Para os jovens, muitas vezes habituados a um consumo visual de conteúdos (redes sociais, vídeo), este modo é apelativo e natural.
Um exemplo emblemático são as bandas desenhadas de Zerocalcare, pseudónimo de Michele Rech, um dos mais conhecidos cartoonistas italianos contemporâneos. Com um estilo único que mistura humor, crítica social e introspeção, Zerocalcare conquistou um vasto público, especialmente entre os jovens, abordando questões pessoais e sociais com uma linguagem direta e visualmente apelativa. Entre as suas obras mais relevantes conta-se Kobane Calling, uma reportagem que relata as viagens de Zerocalcare à fronteira entre a Turquia e a Síria e, mais tarde, a Rojava, descrevendo os seus encontros com ativistas, voluntários e combatentes curdos. Através da história, Zerocalcare consegue transmitir os valores de resistência e solidariedade que caracterizam o movimento curdo e a ideia da revolução de Rojava, baseada nos princípios da autodeterminação, da igualdade de género e do secularismo.
Um dos pontos fortes de Kobane Calling é a sua capacidade de lidar com o drama da guerra através de uma narrativa empática que alterna entre momentos de profunda reflexão e cenas leves e irónicas. Este contraste entre leveza e seriedade consegue captar a atenção do leitor, fazendo-o compreender melhor a complexidade de uma situação de conflito, sem nunca ser moralista ou demasiado didático.
Muitas bandas desenhadas e romances gráficos tratam de questões como o racismo, a imigração, as doenças mentais, o bullying e até a violência. Maus, de Art Spiegelman, por exemplo, utiliza o formato da banda desenhada para narrar o Holocausto, uma tragédia histórica que pode parecer remota e difícil de compreender por um jovem e que é frequentemente objeto de negacionismo. A representação dos nazis como gatos e dos judeus como ratos consegue tornar a história mais acessível, mantendo um forte impacto emocional e ajudando os leitores a refletir sobre a discriminação e a perseguição.
Outro produto muito interessante é “Un fiore rosso per la libertà” (Uma flor vermelha pela liberdade), uma novela gráfica sobre a vida e os atos heroicos de uma das mulheres que contribuíram para a libertação de Itália.
Era a florentina Liliana Benvenuti, nome de guerra ‘Angela’, e tinha cerca de 20 anos quando se juntou à Divisão ‘Arno’ e começou, montada numa bicicleta, a sua atividade de estafeta, arriscando a vida todos os dias para transportar armas e mensagens para os seus camaradas escondidos.
“Decidi contar a sua história porque é importante preservar a memória histórica desse período, agora que todos aqueles que o viveram estão a desaparecer”, explica o autor Thomas Pistoia. “A linguagem da banda desenhada (os desenhos são de Emilio Guazzone) é uma tentativa de envolver as novas gerações, as crianças e os adolescentes, para que se apercebam da importância da liberdade, de como é fácil perdê-la e de como é difícil recuperá-la.”
Incentivo à reflexão crítica
As novelas gráficas, como V for Vendetta de Alan Moore, não se limitam a contar uma história, mas incentivam questões sobre o papel do poder, da liberdade e da justiça. Os jovens leitores são encorajados a refletir sobre estas questões e a considerar a sua relevância no mundo real. A narração de histórias pode ajudar a desenvolver uma consciência crítica, permitindo que os jovens questionem os valores da sociedade em que vivem.
Aprendizagem multimodal e inclusão
Para muitos jovens, especialmente os que têm dificuldades de aprendizagem ou que não estão habituados à leitura tradicional, a banda desenhada representa um acesso mais inclusivo à literatura. A aprendizagem multimodal pode ajudar a ultrapassar certas barreiras e permitir que os leitores acompanhem histórias e conceitos complexos com menos dificuldade, aprendendo conceitos profundos sem serem sobrecarregados por eles.
A banda desenhada e as novelas gráficas podem então servir de catalisadores para discussões sobre temas difíceis. Depois de lerem histórias como Fun Home de Alison Bechdel, que explora a identidade sexual e os conflitos familiares, os jovens leitores sentem frequentemente o desejo de partilhar e discutir os seus pensamentos, contribuindo para um diálogo social mais alargado. Sendo um formato aceite e apreciado pelos jovens, a banda desenhada facilita estas conversas num ambiente que é frequentemente menos formal ou “académico”.
Em última análise, a banda desenhada e os romances gráficos provaram ser ferramentas educativas poderosas e versáteis para introduzir e explorar temas difíceis com os jovens. Utilizam a arte visual para criar empatia e compreensão, incentivando o pensamento crítico e a consciência social de uma forma que poucos outros meios de comunicação conseguem. Como forma narrativa próxima, a banda desenhada e os romances gráficos conseguem entreter e educar simultaneamente, tornando-os cada vez mais indispensáveis no panorama cultural e educativo atual.